O ESTADO BRASILEIRO É LAICO

A REPÚBLICA BRASILEIRA É LAICA: O ESTADO NÃO PODE

TER NEM REVELAR PREFERÊNCIA POR QUALQUER DENOMINAÇÃO RELIGIOSA 

            “Em carta datada de 1o. de janeiro de 1802, dirigida à comunidade batista de Danbury, Connecticut, THOMAS JEFFERSON – que,  além de político (foi o 3º  Presidente dos Estados Unidos da América) e fiel seguidor das ideias iluministas, era, também, um homem profundamente religioso – ENFATIZOU a necessidade de se erigir, com apoio na Primeira Emenda à Constituição americana, “a wall of separation”, “um muro de separação”, entre Igreja e Estado . 

            Ao expor a razão de ser dessa medida, que foi adotada pelos “Founding Fathers” (“Pais Fundadores” da jovem República americana) quando da promulgação do “Bill of Rights” (“Declaração de Direitos”), THOMAS JEFFERSON assim justificou os três objetivos fundamentais visados pela separação entre o domínio secular ou temporal  (no qual atua o Estado) e a esfera espiritual ou religiosa  (que se exaure no plano do foro íntimo de cada pessoa):  (1) IMPOR neutralidade axiológica ao Estado em matéria confessional, para, desse modo,  com fundamento no dogma constitucional da laicidade estatal, assegurar a todos os cidadãos da República, inclusive àqueles que compõem grupos minoritários, a plena fruição da liberdade religiosa, que compreende tanto o direito de professar quanto o direito de não professar determinada crença religiosa,  (2) PROTEGER a liberdade religiosa das pessoas em geral, impedindo que o Estado, ao indevidamente manifestar preferência em favor de certo grupo confessional, venha a perseguir, inibir, constranger ou embaraçar o exercício daqueles que professem outra fé religiosa  e  (3)   FRUSTRAR qualquer tentativa de controle do aparelho de Estado por grupos religiosos, notadamente por grupos fundamentalistas, obstando, desse modo, a ilegítima apropriação religiosa do Estado e de suas instituições, inviabilizando, assim, o surgimento de Estados confessionais ou, o que é pior, a formação de Estados com perfil teocrático !  

            A  “questão religiosa”, também denominada “questão epíscopo-maçônica” (1872-1875), que instaurou situação de gravíssimo conflito entre a Igreja Católica romana (sob o pontificado de Pio IX) e o Trono imperial brasileiro (então ocupado por Dom Pedro II), decorreu do fato de a Carta Constitucional de 1824 (nossa primeira Constituição ) reconhecer o catolicismo como a religião oficial do Estado monárquico ! 

            É curioso observar que, muitos anos após, já proclamada a República no Brasil, CAMPOS SALLES, na condição de Presidente-eleito, visitou o Papa Leão XIII  no Vaticano (1898) e, ao relatar a conversa que manteve com o Sumo Pontífice, registrou-se – como destaca Tobias Monteiro (“O Presidente Campos Salles na Europa”, Edusp, 1983) – que Sua Santidade reconheceu que aquela grave crise política que abalou os alicerces do Império do Brasil deveu-se ao fato de o Estado monárquico brasileiro ser um Estado confessional, na medida em que a Carta imperial  proclamava, em seu artigo 5º, que “A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Imperio (…)” !  

            Com o advento da República, o Marechal Deodoro da Fonseca, em sua condição de Chefe do Governo Provisório, editou o célebre Decreto n. 119-A, de 07 de janeiro de 1890, elaborado por Ruy Barbosa e Demétrio Ribeiro, ambos Ministros de Estado de Deodoro, que instituiu o caráter laico da nascente República brasileira e proibiu “a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa”, consagrando a plena liberdade de culto, extinguindo o padroado e estabelecendo outras providencias !

            Nenhum órgão estatal, instituição governamental ou agente público  tem legitimidade para, desconhecendo o caráter essencialmente laico da República brasileira,  manifestar, por ato oficial, opção ou demonstrar preferência por determinada confissão religiosa, sob pena de ofender, mediante comportamento eivado de inconstitucionalidade,  tanto aqueles que perfilham orientação confessional diversa (como, por exemplo, o judaísmo, o islamismo, o budismo e o hinduísmo) quanto os que são agnósticos e ateus, pois tal gesto político, ainda que de boa-fé e bem intencionado, traduz , em sua concreção, claro retrocesso de ordem institucional, por importar em frontal desrespeito à  cláusula de nossa Lei Fundamental que  estabeleceu  a separação formal e material entre a dimensão temporal ou secular (na qual o Estado desenvolve suas atividades) e a dimensão espiritual (em que militam aqueles que professam qualquer fé religiosa ) !!!  

            A República brasileira é constitucionalmente laica ! Isso significa, entre muitas outras consequências que derivam naturalmente do dogma constitucional da laicidade, que o Estado, em suas diversas instâncias de atuação, não pode ter nem demonstrar preferência por qualquer confissão religiosa ! 

            Há de ser absoluta a neutralidade do Estado brasileiro em matéria religiosa ! Nada mais nocivo ou perigoso para o perfil laico da República do que o Poder Público manifestar preferência ou fazer distinção que exteriorize demonstração de apreço ou de simpatia por determinada denominação religiosa ! 

            É interessante observar, a título meramente ilustrativo, que, em 1947, a Suprema Corte dos EUA, ao julgar o caso “Everson v. Board of Education”,  rememorou, no voto do Juiz Hugo Black, as palavras de Jefferson (“wall of separation”) para decidir que Igreja e Estado se acham constitucionalmente separados naquele País (o que também ocorre no Brasil), vedadas, em consequência, recíprocas interferências de cada qual em suas respectivas esferas de atuação ! 

            Em conclusão:  é na República que se situa o marco histórico-temporal consagrador do princípio básico da laicidade estatal, de cuja incidência derivam, pelo menos, como precedentemente enfatizado, três consequências de fundamental importância: (a) a separação orgânica entre Igreja e Estado, a propiciar uma nítida linha divisória entre a esfera secular ou temporal, de um lado, e o domínio espiritual, de outro; (b) a neutralidade axiológica do Estado em matéria confessional, a significar que o Poder Público não tem preferência nem aversão a qualquer denominação religiosa; e (c) o respeito incondicional à liberdade religiosa, cuja prática não pode sofrer interferência do aparelho de Estado, seja para favorecer aquele que a exerce, seja para beneficiar aquele que opta por não professar religião alguma, seja, ainda, para prejudicá-los.

            Assuntos de teologia e questões de Estado revelam-se matérias que não podem confundir-se, pois nem a teologia deve subordinar-se à razão de Estado nem esta ao pensamento teológico, mesmo porque as convicções no domínio religioso pertencem, única e exclusivamente, ao plano da razão individual e ao foro íntimo, que é inviolável, de cada ser humano. 

            A necessária delimitação entre a esfera religiosa (que concerne ao espírito) e o domínio secular (que é regido pelo Estado) constitui, por excelência, requisito essencial ao primado da liberdade humana !

            Cabe esclarecer  que a fórmula constitucional da laicidade do Estado não significa que o Estado republicano brasileiro tornou-se um Estado ateu, nem sequer anticlerical, valendo rememorar, no ponto, a correta observação de JOÃO CAMILLO DE OLIVEIRA TÔRRES (“A Democracia Coroada”, p. 405, 2a ed., 1964, Vozes), para quem “A Constituição de 1891 [aquela que, por primeiro, impôs a separação entre Igreja e Estado] escapou de ser nitidamente anticlerical, para ser, apenas, laica. Tolerava-se, mas não se combatia frontalmente a religião”.

            Na realidade, esse mesmo autor reconhece como um dos efeitos positivos resultantes da separação formal entre Igreja e Estado a emancipação libertadora da instituição religiosa em face do Poder Público.  

            Nesse contexto, e considerado o delineamento constitucional da matéria em nosso sistema jurídico, impõe-se, como elemento viabilizador da liberdade religiosa, a separação institucional entre Estado e Igreja, a significar, portanto, que, no Estado laico, como o é o Estado brasileiro, haverá, sempre, uma clara e precisa demarcação de domínios próprios de atuação e de incidência do poder civil (ou secular) e do poder religioso (ou espiritual). 

            Disso resultará, como efeito consequencial, que a escolha, ou não, de uma fé religiosa ou de uma denominação confessional  traduzirá, sempre, questão de ordem estritamente privada, vedada, no ponto, qualquer interferência estatal (seja de apoio, de simpatia, de preferência, de estímulo, de restrição ou de perseguição), sendo proibido, ainda, ao Estado o exercício de sua atividade com fundamento em princípios teológicos, ou em razões de ordem confessional, ou, ainda, em artigos de fé !  

            Quanto a tal proibição, mostrar-se-á  irrelevante – em face da exigência constitucional de laicidade do Estado –  que se trate de dogmas consagrados por determinada religião considerada hegemônica no meio social, sob pena de concepções doutrinárias de certa denominação religiosa transformarem-se, inconstitucionalmente, em critério definidor das decisões estatais e da formulação e execução de políticas governamentais.

            O fato irrecusável é que, nesta República laica, fundada em bases democráticas, o Direito e o Poder Público não se submetem à religião (a qualquer religião) e as autoridades e servidores estatais nos três níveis da Federação devem despojar-se de pré-compreensões pessoais em matéria confessional, em ordem a não fazerem  repercutir, sobre o processo de poder, quando no exercício de suas funções (qualquer que seja o domínio de sua incidência), as suas próprias convicções religiosas.”

(CELSO DE MELLO, Ministro aposentado e ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal )

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