OPINIÃO – DEMOCRACIA COMEÇA PELA ÉTICA DOS JUÍZES – MINISTRO APOSENTADO CELSO DE MELLO – 19/12/2025

Postagem 19/12/2025 – 22 horas

“A Democracia Começa Pela Ética dos Juízes: Código de

Conduta Não Enfraquece o STF. Fortalece-o imensamente”

1. Integridade e imparcialidade como fundamentos da legitimidade e autoridade dos magistrados em geral

A[JI1]  legitimidade de um tribunal constitucional não se exaure na autoridade formal que a Constituição lhe confere. Ela se ancora, sobretudo, na confiança pública permanente quanto à independência, à imparcialidade e à integridade moral de seus julgadores. Em democracias constitucionais maduras, tal confiança não é presumida nem automática: constrói-se, preserva-se e renova-se mediante regras claras, condutas exemplares e transparência institucional.

É nesse contexto que se insere, com especial relevo, a iniciativa do Ministro Edson Fachin, Presidente do Supremo Tribunal Federal, orientada à adoção de um Código de Conduta para os Ministros do STF. Trata-se de providência de elevada densidade republicana, coerente com pronunciamentos públicos por ele proferidos — inclusive quando de sua posse na Presidência da Corte — e alinhada às melhores práticas observadas nas democracias constitucionais contemporâneas. Por sua inequívoca relevância institucional, essa iniciativa deve ser apoiada pela sociedade, pela comunidade jurídica e pelos meios acadêmicos, pois visa resguardar não apenas a dignidade pessoal dos Ministros, mas, sobretudo, a respeitabilidade do próprio Supremo Tribunal Federal.

Do ponto de vista institucional, o STF exerce jurisdição sobre temas sensíveis e estruturantes da ordem constitucional, notadamente aqueles relativos (i) à separação de Poderes; (ii) à defesa dos direitos fundamentais e dos grupos vulneráveis; (iii) ao controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos; e (iv) à proteção da democracia e do Estado de Direito. 

Quanto maior a responsabilidade constitucional atribuída a uma Corte Suprema, mais rigorosos devem ser os padrões éticos e de transparência exigidos de seus Juízes.

É por essa razão que um Código de Conduta dos Ministros do STF deve proclamar, como condição de seu efetivo respeito, princípios e critérios fundamentais que orientem a atuação jurisdicional e extrajudicial dos integrantes da Corte. Entre tais princípios e critérios, avultam, ao menos:

(a) a integridade e a independência do Poder Judiciário, reafirmando-se, desse modo, que a autoridade dos Ministros decorre não apenas da Constituição da República, mas também da confiança da sociedade, a ser incondicionalmente respeitada em cada ato funcional;

(b) a vedação de condutas impróprias ou com aparência de impropriedade, que impōe aos Juízes que não apenas sejam efetivamente imparciais, mas também que pareçam imparciais;

(c) o dever de desempenho isento, diligente e equidistante das funções judicantes, prevenindo atrasos indevidos por parte desses altos magistrados e buscando inibir-lhes qualquer comportamento que denote preferência ou proximidade com partes, Ministério Público ou Advogados; e

(d) a regulação rigorosa das atividades extrajudiciais, disciplinando a realização, sempre em caráter excepcional, de palestras remuneradas, participação em eventos patrocinados por terceiros, viagens, bem assim o recebimento de presentes ou de hospitalidades custeadas por terceiros.

Na ausência de parâmetros explícitos, públicos e verificáveis, práticas extrajudiciais — ainda que lícitas — podem gerar percepções de favorecimento, dependência pessoal ou proximidade indevida com interesses privados, comprometendo a confiança social na jurisdição constitucional. 

Inteiramente aplicável ao tema objeto de referida proposta o adágio atribuído ao jurisconsulto Paulo: “Non omne quod licet, honestum est” (“Nem tudo que é lícito (permitido pela lei) é honesto (moralmente correto”).

Um ato pode ser formalmente lícito e, ainda assim, eticamente reprovável. A legalidade, por si só, não esgota a ideia de justiça nem exonera o indivíduo — ou o agente público — do dever de conformar sua conduta a princípios morais que precedem e iluminam o próprio Direito. Essa distinção – central ao discurso ético-jurídico e institucional – encontra apoio em autores de diferentes épocas, tais como Aristóteles (“Ética a Nicômaco”), Cícero (“De Officiis”; “De Legibus”), Santo Agostinho (“A Cidade de Deus”) , Immanuel Kant (“Metafísica dos Costumes”) , Lon L. Fuller (“The Morality of Law”) , H. L. A. Hart (“The Concept of Law”), Norberto Bobbio (“Teoria do Ordenamento Jurídico”) e Miguel Reale (“Lições Preliminares de Direito”), entre outros ilustres pensadores! 

Nem tudo o que é legal é moralmente legítimo. O Direito, quando fiel à sua função civilizatória, deve ser lido à luz de valores, e a conduta humana — sobretudo a conduta pública — deve ser julgada não apenas pelo critério do “pode”, mas também pelo critério do “deve”: aquilo que preserva a dignidade, a justiça e a integridade das instituições.

Daí a necessidade de um Código de Conduta que atue como instrumento preventivo, orientador e pedagógico, e não como resposta tardia a crises de legitimidade !

A adoção de um Código de Conduta serviria, ao menos, a três objetivos fundamentais: (i) prevenir condutas que comprometam a integridade institucional, mediante limites claros às atividades extrajudiciais e às benesses oferecidas por terceiros; (ii) assegurar transparência pública quanto às condutas e vínculos externos dos Ministros; e (iii) uniformizar padrões éticos, evitando interpretações subjetivas, casuísticas ou assimétricas.

2. A experiência norte-americana e os limites da autorregulação

A experiência recente da Suprema Corte dos Estados Unidos evidencia os riscos de um modelo ético excessivamente fundado na autorregulação individual. 

Investigações jornalísticas revelaram a aceitação, por Juízes (“Justices”) da Corte Suprema americana (Samuel Alito e Clarence Thomas), de benefícios relevantes (viagens e hospedagens luxuosas) custeados por bilionários ligados a interesses políticos e econômicos, com reflexos graves e negativos sobre a percepção pública de independência e isenção dos magistrados que a compõem !

Particular relevo assumiu o caso do Justice Clarence Thomas, que, ao longo de aproximadamente 20 (vinte) anos, teria recebido viagens nacionais e internacionais, hospedagens de alto padrão, transporte em aeronaves privadas e hospedagens em iates, benefícios estendidos a ele e a sua esposa, oferecidos por alguns benfeitores, notadamente um empresário bilionário de grande influência política e grande doador do Partido Republicano americano (G.O.P.). 

Segundo estimativa divulgada pelo Comitê Judiciário do Senado dos EUA (“Senate Judiciary Committee”) , o valor acumulado dessas vantagens teria superado US$ 4.750.000 dólares americanos , em apuração decorrente de investigações parlamentares e reportagens que indicaram a não declaração de parcela significativa desses benefícios nos formulários patrimoniais exigidos (“How ProPublica Exposed Ethics Scandals at the US Supreme Court”, in “Global Investigative Journalism Network- GIJN, 25/04/2024).

A duração prolongada das práticas, o vulto estimado dos valores e a concentração dos benefícios suscitaram severas críticas públicas e debate institucional acerca da suficiência de um sistema ético baseado apenas na autocontenção pessoal (“New ethics inquiry details more trips by Clarence Thomas paid for by wealthy benefactors”, in “The Guardian”, 21/12/2024).

Nesse contexto, cumpre mencionar a Declaração (“Statement”) da Suprema Corte americana referente ao “Code of Conduct”, divulgada em 2013, pela qual a Corte Suprema dos EUA, reagindo às fortes críticas recebidas, afirmou tomar como referência o texto do “Code of Conduct for United States Judges”, sem, contudo, adotar código próprio vinculante. Os preceitos do Código de Conduta dos Juízes Federais americanos consagram a integridade e a independência do Judiciário; a vedação da impropriedade e de sua aparência; o desempenho imparcial, diligente e competente das funções; a regulação das atividades extrajudiciais; e a abstenção de atividade político-partidária. 

A natureza meramente declaratória da Resolução da Corte Suprema dos EUA, todavia, revelou-se insuficiente para prevenir crises de legitimidade, evidenciando os limites da autorregulação.

3. A experiência do Tribunal Constitucional Federal Alemão: ética como prevenção

Em contraste, o Tribunal Constitucional Federal Alemão (“Bundesverfassungsgericht”) oferece paradigma distinto, marcado por uma cultura institucional preventiva. 

No Tribunal Constitucional Federal alemão (“Bundesverfassungsgericht”), a conduta de seus juízes é orientada por um “Verhaltenskodex” (Código de Conduta ou de Comportamento) autoimposto pela própria Corte, resultante de deliberação interna dos magistrados e consolidado como expressão de uma cultura institucional rigorosa de ética judicial. 

Embora não se trate de código promulgado por lei formal, esse conjunto de diretrizes internas possui elevada força normativa e simbólica, funcionando como parâmetro vinculante de conduta funcional e extrafuncional dos juízes constitucionais.

Esse “Verhaltenskodex” estrutura-se em torno de princípios essenciais, entre os quais se destacam, a integridade pessoal e funcional do magistrado constitucional, como pressuposto da legitimidade da jurisdição; a independência e a imparcialidade, concebidas em sentido não apenas subjetivo, mas sobretudo objetivo, de modo a afastar qualquer situação suscetível de gerar dúvida razoável quanto à isenção do juiz; e a vedação não apenas de conduta imprópria, mas também da mera aparência de impropriedade, exigindo-se que o magistrado permaneça “acima de qualquer dúvida” (“über jeden Zweifel erhaben”).

No mesmo sentido, esse Código alemão impõe restrições severas ao recebimento de presentes, benefícios, hospitalidades ou vantagens oferecidas por terceiros, admitindo apenas atenções de caráter social insignificante, destituídas de potencial para comprometer a confiança pública na integridade, imparcialidade e independência da jurisdição constitucional. Estabelece, ainda, limites estritos às atividades extrajudiciais, especialmente quanto à participação em eventos, conferências ou compromissos que possam acarretar conflitos de interesses, exposição indevida ou risco à percepção de imparcialidade.

A nota distintiva do modelo alemão reside na centralidade atribuída à proteção da confiança pública (“Vertrauen der Öffentlichkeit”) na jurisdição constitucional. Por essa razão, não se exige a demonstração de parcialidade concreta para justificar o afastamento do juiz: basta a existência de dúvida razoável ou a possibilidade objetiva de abalo à credibilidade institucional da Corte. A ética pública é concebida, assim, como instrumento preventivo, destinado a evitar crises de legitimidade antes que elas se manifestem.

Vê-se, portanto, que, no sistema alemão, a imparcialidade é concebida de modo objetivo e rigoroso: o juiz deve afastar-se sempre que exista dúvida razoável — ainda que não comprovada — sobre sua isenção. Não se exige demonstração de parcialidade; basta a possibilidade de abalo à confiança pública, como acima assinalado, aplicando-se, com intensidade quase absoluta, a máxima segundo a qual o magistrado deve estar “acima de qualquer dúvida”. 

Essa postura explica a inexistência, na história recente do “Bundesverfassungsgericht”, de episódios envolvendo aceitação de benefícios privados, viagens patrocinadas, presentes relevantes ou hospitalidades custeadas por terceiros. A remuneração é exclusivamente pública, e a sobriedade material integra a própria identidade funcional do juiz constitucional. A ética , no caso do Tribunal Constitucional Federal alemão , atua antes do problema, e não depois do escândalo. 

 A própria estrutura normativa desse Código é desenhada para evitar aparências de favorecimento ou conflitos de interesses , e há fortes expectativas sociais e culturais de que os magistrados se mantenham fora de situações que possam comprometer a confiança pública neles e no próprio Tribunal ! 

A cobertura disponível (incluindo textos sobre o Código de Conduta e sua inspiração para modelos estrangeiros) tem destacado a cultura de integridade e a preocupação com a aparência de imparcialidade, não a ocorrência de casos éticos graves envolvendo benefícios pessoais. 

A ausência de casos noticiados não significa imunidade absoluta a problemas éticos em qualquer contexto institucional, mas reflete, historicamente, a forte tradição de autocontenção ética e de regras internas rígidas no âmbito da Corte Constitucional Federal alemã , que tem funcionado de modo a evitar a emergência de escândalos referentes a benefícios pessoais envolvendo seus juízes.  

 4. Conclusão

A proposta de adoção de um Código de Conduta para os Juízes do Supremo Tribunal Federal, defendida pelo Ministro Edson Fachin, Presidente da Corte, revela-se moralmente necessária e institucionalmente urgente. A experiência comparada demonstra que não basta confiar na integridade pessoal dos juízes: impõe-se prever, em norma, padrões objetivos, mecanismos de transparência e deveres positivos de conduta.

No caso do STF, um Código de Conduta não enfraquece a independência de seus Ministros; ao contrário, protege-a, ao afastar suspeitas, prevenir constrangimentos e fortalecer a autoridade moral das decisões da Corte. 

Em tempos de desinformação, polarização e descrédito institucional, não basta ser imparcial — é preciso também parecer imparcial. A Justiça Constitucional não se sustenta no prestígio pessoal de seus julgadores, mas na confiança pública que inspira.

Trata-se, pois, a iniciativa do Ministro Edson Fachin, de importante medida de Estado, orientada exclusivamente pelo interesse público, destinada a assegurar a confiança da sociedade na imparcialidade do Supremo Tribunal Federal e a preservar a dignidade moral da jurisdição constitucional. 

A experiência norte-americana demonstra que, mesmo em democracias consolidadas, a ausência de mecanismos eficazes de ética judicial pode conduzir a crises graves de legitimidade. 

A iniciativa ora examinada aponta, portanto, no sentido correto: o da prevenção, da transparência e do fortalecimento da democracia constitucional.

Reafirmo, pois, o que enfatizei anteriormente neste artigo a respeito da proposta de um Código de Conduta dos Ministros do STF , cuja ilibada reputação , idoneidade moral e respeitabilidade pessoal plenamente reconheço : *a iniciativa da proposta* do Ministro Edson Fachin , Presidente do Supremo Tribunal Federal, que se mostra necessária, oportuna e impessoal, *atende* a um inafastável imperativo republicano!  

É hora de apoiá-la ! A República o exige !

(CELSO DE MELLO, Ministro aposentado e

ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, biênio 1997-1999)


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