
CELSO DE MELLO, Ministro aposentado
e ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, biênio 1997-1999.
Post publicado em 1-6-2025 – 20h18
“A pretendida suspensão” do remédio de “habeas corpus” pelo Presidente Trump, *sem prévia autorização* do Congresso americano, *representa* frontal e direta ofensa à Constituição dos EUA , *cujo Artigo I, Seção 9* , estabelece que “The privilege of the writ of habeas corpus SHALL NOT be suspended, UNLESS when in cases of rebellion or invasion the public safety may require it.” Po
“Note-se” que a Constituição americana proclama que essa garantia constitucional *NÃO* será suspensa (é a regra), *EXCETO* em casos de “rebelião” ou de “invasão” dos EUA, circunstâncias que, claramente, *NÃO* estão ocorrendo naquele país ! “Nem” rebelião “nem” invasão !
*Vale rememorar*, neste ponto, *importante precedente histórico* ocorrido no curso da Guerra Civil americana (1861-1865), que envolveu discussão sobre os “war powers” (poderes de guerra) do Presidente dos EUA !
O “Chief Justice” (Presidente da Suprema Corte americana) Roger B. Taney “julgou inconstitucional”, em 1861 (início da Guerra Civil nos EUA), “o ato suspensivo” do Presidente Abraham Lincoln, no caso “Ex Parte Merryman”!
“Consoante decidiu” Roger B. Taney, “no processo” “Ex Parte Merryman” (1861), “o ato de suspensão” praticado pelo Presidente Lincoln, “por ser excepcional”, exigia *prévia autorização* do Congresso dos EUA, “totalmente ausente” naquele episódio!
“O Presidente Lincoln”, no entanto, “a despeito” da gravidade do seu ato, “descumpriu” essa ordem de HC concedida pelo “Chief Justice” Roger B. Taney!
O Congresso americano, contudo, “veio*, *posteriormente”, a editar, em 1863, o “Habeas Corpus Suspension Act”, que foi uma lei temporária que vigorou até o fim da Guerra de Secessão, em 1865.
Essa lei *também ratificou* aquele e outros atos suspensivos do HC editados por Lincoln (“foram três”) , sem prévia autorização congressional , praticados “antes” de sua vigência.
“Somente duas vezes”, no constitucionalismo americano, um Presidente daquele país “recusou-se a executar” (“to enforce”) ordem mandamental emanada da Suprema Corte dos EUA.
Esse fato ocorreu, “pela primeira vez”, no caso “Worcester v. Georgia” (1832) , julgado pela Corte Suprema americana, “em que se reconheceu” “a soberaniua tribal” “e a ausência de poderes” dos Estados-membros da Federação para legislar sobre territórios indígenas (“no caso”, a tribo Cherokee).
O Estado da Geórgia *recusou-se* a cumprir a decisão da Suprema Corte, “no que teve o inteiro apoio” do Presidente Andrew Jackson, “a quem se atribuiu’ esta frase desafiadora: “John Marshall has made his decision; now let him enforce it!” (“John Marshal proferiu a sua decisão; agora, ele que a execute!”)
“A segunda vez” em que um Presidente americano desobedeceu uma decisão judicial “foi aquela” acima mencionada, “logo no início” deste texto, “referente” ao julgado proferido pelo Presidente da Corte Suprema americana Roger B. Taney (“Ex Parte Merryman”), “descumprido” pelo Presidente Lincoln (1861).
“A grave ameaça” de Trump, “de suspender” por “executive order”, o remédio constitucional do “habeas corpus”, *sem anterior aprovação* do Congresso dos EUA (“e inocorrente”, também, situação caracterizadora de “rebelião” ou de “invasão”), “ainda subsiste”, mesmo porque tal intenção “sequer” foi desmentida pelo Presidente americano, que deveria conhecer – “parece que não” – a Constituição do seu próprio país !
“Tudo indica” que esse possível ato executivo, “embora” arbitrário e inconstitucional (suspensão do “habeas corpus”), “poderá vir a ser praticado” por Trump, “indiferente” ao que proclama a Constituição americana, “em razão” de sua arrogância desmedida (certamente embriagado pela “hybris” grega, capaz de despertar a “ira dos Deuses”) “ou” de sua inaceitável (e contraditória) pretensão de agir como verdadeiro “monarca presidencial” (ou absurdo “imperator mundi”) !
“Após pouco mais” “de 4 (quatro) meses” no exercício da Chefia de Estado e de Governo dos EUA , o Presidente Donald Trump “tem demonstrado”, de modo inequívoco, por ações, gestos e declarações , (a) “que desconhece” a História (e que, por isso mesmo, está fadado a repetir-lhe os erros), (b) “que revela* ultrajante menosprezo pela dignidade de Povos e grupos vulneráveis, (c) “que transgride” princípios fundamentais que moldaram as relações internacionais dos Estados modernos, “como aquele” consagrados pelos importantes Tratados de Paz de Westfália, de 1648, (d) “que desrespeita” a Carta de São Francisco de 1945 (ONU), no ponto em que proclama a igualdade soberana dos Estados nacionais (Artigo 1, n. 2, e Artigo 2, n. 1) , (e) “que descumpre” (veja-se o caso do canal do Panamá) o postulado básico da boa-fé e do respeito aos tratados e convenções internacionais (“pacta sunt servanda”), proclamado pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (Artigo 26), entre outros expressivos valores “que iluminam e fortalecem” o catálogo dos direitos e liberdades essenciais da pessoa humana “e que ordenam” as relações no plano internacional !
“Uma última observação”:
KARL MARX, em seu “O 18 de Brumario de Luis Bonaparte” (1852), INICIA a sua obra, PROFERINDO , “logo no primeiro parágrafo”, a sua célebre frase :
“Hegel” observa (…) que “todos os fatos e personagens de grande importância” na história do mundo “ocorrem”, por assim dizer, “duas vezes”. E esqueceu-se de acrescentar: “A PRIMEIRA VEZ” COMO TRAGÉDIA, “A SEGUNDA” COMO FARSA (…)”
“Eis”, nesse possível gesto autocrático de Donald Trump, “a História podendo repetir-se”, só que desta vez *como farsa*> …
