DIA 27 DE JANEIRO, SOBREVIVENTES DO HOLOCAUSTO MARCARAM 80 ANOS DA LIBERTAÇÃO DO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO NAZISTA DE AUSCHWITZ. ABAIXO UMA REFLEXÃO DO MINISTRO CELSO DE MELLO, APOSENTADO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF) E PRESIDENTE DA SUPREMA CORTE DO BRASIL EM 1997/1999.
“Em meu discurso de posse, em São Paulo, como Promotor de Justiça, em 03/11/1970 (fui o 1o. colocado no concurso público), sustentei que leis injustas – que transgridem direitos fundamentais ou que se mostram conflitantes com o senso de justiça ou , ainda, que possuem conteúdo antidemocrático – NÃO podem obrigar NEM impor o seu cumprimento à sociedade, por lhes faltar o necessário suporte ético, de um lado, e por desrespeitarem, de outro, o postulado que resguarda a essencial dignidade da pessoa humana.
Leis injustas não são leis! Essa afirmação reproduz antigo brocardo jurídico segundo o qual “lex injusta non est lex”!
Trata-se de orientação sustentada, entre outros, por Santo Agostinho, grande nome da filosofia patrística (séculos IV e V d.C.), e por São Tomás de Aquino, cujas lições – que refletem a filosofia escolástica (século XIII d.C) – moldaram a teologia cristã, notadamente da Igreja de Roma !
Para Tomás de Aquino, as leis injustas traduzem um ato estatal de violência, pois representam, não a vontade geral do povo, mas, sim, a subversão desse princípio, por refletirem um gesto que corrompe o próprio sentido finalístico do ato legislativo, que se destina à promoção do bem comum !
O direito de resistência e de oposição às leis injustas vela ao pé de todas as instituiçōes democráticas.
E esse direito básico e natural legitima, especialmente nas sociedades autocráticas, o exercício da desobediência civil (protestar e resistir por meios não violentos), como preconiza Henry David THOREAU, em seu ensaio “Desobediência Civil”, inicialmente publicado com o título “Resistance to Civil Government” (1849).
FOI o que fez GANDHI com sua filosofia política da “Satyagraha” (resistência não violenta) ou o monarca dinamarquês , rei Christian X (1870-1947), que, embora cristão, colocou em seu peito a Estrela de David, em seus passeios matutinos a pé , em protesto contra a ocupação nazista de seu país e em solidariedade ao povo judeu.
Os estudiosos desse gesto real de pacífica resistência assim relataram o seu gesto, que teria sido seguido pelo povo dinamarquês: “O rei Christian da Dinamarca a tinha compreendido perfeitamente e, diante da exigência dos nazistas de impor a estrela amarela aos judeus, também a alfinetava em seu casaco.”
Também o reverendo Martin Luther king, Jr. proclamava ser nosso “dever moral desobedecer a leis injustas.”
Cabe também relembrar o movimento de inspiração católica, denominado “Rosa Branca” (“Weiße Rose”), surgido na Universidade de Munique, que, em plena Alemanha nazista, praticou atos de resistência não violenta contra o regime totalitário imposto por Hitler. Foram descobertos pela Gestapo, julgados sumariamente e guilhotinados (1943) !!!
Em situações extremas (casos em que a injustiça, o arbítrio e a opressão tornem-se intoleráveis) e em que a prática da não violência mostre-se ineficaz, o recurso à violência, sempre como “ultima ratio”, esgotadas todas as alternativas pacíficas, poderá justificar-se .
Foi o que ocorreu (1) com os “partigiani” na Itália fascista, (2) com os noruegueses, em sua luta contra o governo colaboracionista de Vidkun Quisling, que apoiou os invasores nazistas da Noruega, (3) com os “maquisards”, em seu combate aos nazistas que haviam ocupado a França e a Bélgica ou, ainda (4) com a Haganah “ (A Defesa”), emrelação às forças militares britânicas (segundo os autores, “Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a recusa britânica de cancelar as restrições do Livro Branco de 1939 à imigração judaica, o Haganá se voltou para atividades de sabotagem contra as autoridades britânicas, incluindo plantar bombas em pontes, ferrovias e navios usados para deportar imigrantes judeus ilegais, bem como ajudar a trazer judeus para a Palestina em desafio à política britânica”).
Na Alemanha nazista, o conceito contemporâneo de “lawfare” (uso anômalo dos instrumentos jurídico-legais com a finalidade de perverter os grandes (e universais) princípios da democracia constitucional e de , assim. causar grave dano a um adversário , qualificado como inimigo comum do regime (ou “inimigo objetivo”, na designação de Hannah Arendt, em seu clássico “As Origens do Totalitarismo”) foi utilizado contra o povo judeu, suprimindo-lhe a condição de cidadania e impondo-lhe restrições degradantes, cruéis, desumanas e humilhantes, tratando, absurdamente, os filhos de Israel como não pessoas !!!
Desse modo, aqueles que foram responsáveis pela morte de Anne Frank e pelo Holocausto praticaram crimes contra a Humanidade e de genocídio, não os beneficiando a alegação defensiva de que apenas cumpriam a lei nazista: uma lei injusta, perversa, desumana e torpe que transgredia, frontalmente, o postulado fundamental da essencial dignidade da pessoa humana, pressuposto axiológico do Estado democrático de Direito e núcleo de que emanam todas as demais liberdades e direitos do ser humano !!! “
