POR OCASIÃO DO “DIA INTERNACIONAL DA MULHER”, EM 08/03/2023

VOTO-VOGAL DO MINISTRO CELSO DE MELLO NA ADC 19/DF SOBRE A CONDIÇÃO FEMININA E A PROTEÇÃO INTEGRAL  DA MULHER EM “09/02/2012 – PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE 19 DISTRITO FEDERAL

V O T O

            O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO:  O longo itinerário histórico percorrido pelo processo de reconhecimento, afirmação e consolidação dos direitos da mulher, seja em nosso País, seja no âmbito da comunidade internacional, revela trajetória impregnada de notáveis avanços, cuja significação teve o elevado propósito de repudiar práticas sociais que injustamente subjugavam a mulher, suprimindo-lhe direitos e impedindo-lhe o pleno exercício dos múltiplos papéis que a moderna sociedade, hoje, lhe atribui, por legítimo direito de conquista.

Esse movimento feminista – que fez instaurar um processo de inegável transformação de nossas instituições sociais – buscou, na perspectiva concreta de seus grandes objetivos, estabelecer um novo paradigma cultural, caracterizado pelo reconhecimento e pela afirmação, em favor das mulheres, da posse de direitos básicos fundados na essencial igualdade entre os gêneros.

            Todos sabemos, Senhor Presidente, sem desconhecer o relevantíssimo papel pioneiro desempenhado, entre nós, no passado, por Carlota Pereira de Queiroz, Nísia Floresta, Bertha Lutz, Chiquinha Rodrigues e Maria Augusta Saraiva, dentre outros grandes vultos brasileiros do processo de afirmação da condição feminina, que, notadamente a partir da década de 1960, verificou-se um significativo avanço na discussão de temas intimamente ligados à situação da Mulher, registrando-se, no contexto desse processo histórico, uma sensível evolução na abordagem das questões de gênero, de que resultou, em função de um incessante movimento de caráter dialético, a superação de velhos preconceitos culturais e sociais, que impunham, arbitrariamente, à

mulher, mediante incompreensível resistência de natureza ideológica, um inaceitável tratamento discriminatório e excludente, que lhe negava a possibilidade de protagonizar, como ator relevante, e fora do espaço doméstico, os papéis que até então lhe haviam sido recusados.

Dentro desse contexto histórico, a mística feminina, enquanto sinal visível de um processo de radical transformação de nossos costumes, teve a virtude, altamente positiva, consideradas as adversidades enfrentadas pela mulher, de significar uma decisiva resposta contemporânea aos gestos de profunda hostilidade, que, alimentados por uma irracional sucessão de fundamentalismos – quer os de caráter teológico, quer os de índole política, quer, ainda, os de natureza cultural -, todos eles impregnados da marca da intolerância e que culminaram, em determinada etapa de nosso processo social, por subjugar, injustamente, a mulher, ofendendo-a em sua inalienável dignidade e marginalizando-a em sua posição de pessoa investida de plenos direitos, em condições de igualdade com qualquer representante de gênero distinto.

Cabe ter presente, bem por isso, neste ponto, ante a sua extrema importância, a Declaração e Programa de Ação de Viena, adotados pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos promovida pela Organização das Nações Unidas (1993), na passagem em que esse instrumento, ao reconhecer que os direitos das mulheres, além de inalienáveis, “constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos universais” (Capítulo I, item n. 18), deu expressão prioritária à “plena participação das mulheres, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural nos níveis nacional, regional e internacional (…)” (Capítulo I, item n. 18).

            Foi com tal propósito que a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos instou, de modo particularmente expressivo, que “as mulheres tenham pleno e igual acesso aos direitos humanos e que esta seja uma prioridade para os Governos e as Nações Unidas”, enfatizando, ainda, “a importância da integração e plena participação das mulheres como agentes e beneficiárias do processo de desenvolvimento (…)”, tudo isso com a finalidade de pôr em relevo a necessidade “de se trabalhar no sentido de eliminar todas as formas de violência contra as mulheres na vida pública e privada, de eliminar todas as formas de assédio sexual, exploração e tráfico de mulheres, de eliminar preconceitos sexuais na administração da justiça e de erradicar quaisquer conflitos que possam surgir entre os direitos da mulher e as conseqüências nocivas de determinadas práticas tradicionais ou costumeiras, do preconceito cultural e do extremismo religioso” (Capítulo II, “B”, n. 3, itens ns. 36 e 38 – grifei).

            Esse mesmo compromisso veio a ser reiterado na Declaração de Pequim, adotada na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada na capital da República Popular da China (1995), quando, uma vez mais, proclamou-se que práticas e atos de violência “são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e devem ser combatidos e eliminados”, conclamando-se os Governos à urgente adoção de medidas destinadas a combater e a eliminar todas as formas de violência e de constrangimento “contra a mulher na vida privada e pública, quer perpetradas ou toleradas pelo Estado ou pessoas privadas” (“Plataforma de Ação”, Cap. IV, “I”, item n. 224), especialmente quando tais atos traduzirem abuso de poder, tal como expressamente reconhecido nessa Conferência Internacional sobre a Mulher:

“A violência contra a mulher constitui obstáculo a que se alcancem os objetivos de igualdade, desenvolvimento e paz. A violência contra a mulher viola e prejudica ou anula o desfrute por parte dela dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. A inveterada incapacidade de proteger e promover esses direitos humanos e liberdades nos casos de violência contra a mulher é um problema que preocupa a todos os Estados e exige solução. (…).

            A expressão ‘violência contra a mulher’ se refere a qualquer ato de violência que tem por base o gênero e que resulta ou pode resultar em dano ou sofrimento de natureza física, sexual ou psicológica, inclusive ameaças, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade, quer se produzam na vida pública ou privada. Por conseguinte, a violência contra a mulher pode assumir, entre outras, as seguintes formas:

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b) a violência física, sexual e psicológica no nível da comunidade em geral, inclusive as violações, os abusos sexuais, o assédio e a intimidação sexuais no trabalho (…).

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            Os atos ou as ameaças de violência, quer ocorram no lar ou na comunidade, perpetrados ou tolerados pelo Estado, infundem medo e insegurança na vida das mulheres e constituem obstáculo à obtenção da igualdade, do desenvolvimento e da paz. O medo da violência, incluindo o assédio, é um constrangimento permanente para a mobilidade da mulher, que limita o seu acesso às atividades e recursos básicos. A violência contra a mulher está associada a um elevado custo social, sanitário e econômico tanto para o indivíduo como para a sociedade. A violência contra a mulher é um dos mecanismos sociais fundamentais mediante os quais a mulher é forçada a uma posição de subordinação comparada com a do homem. (…).

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            A violência contra a mulher é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens, que têm causado a dominação da mulher pelo homem, a discriminação contra a mulher e a interposição de obstáculos ao seu pleno desenvolvimento. A violência contra a mulher ao longo do seu ciclo vital deriva essencialmente de hábitos culturais, em particular dos efeitos prejudiciais de algumas práticas tradicionais ou consuetudinárias e de todos os atos de extremismo relacionados com a raça, sexo, o idioma ou a religião, que perpetuam a condição de inferioridade conferida à mulher no seio da família, no local de trabalho, na comunidade e na sociedade. (…).

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            As mulheres podem tornar-se vulneráveis à violência perpetrada por pessoas em posição de autoridade tanto em situações de conflito como de não-conflito. (…).” (“Plataforma de Ação”, IV, “D”, itens ns. 112, 113, 117, 118 e 121 – grifei)

            O eminente Embaixador José Augusto Lindgren Alves, em lapidar reflexão crítica sobre o tema pertinente à condição feminina (“Relações Internacionais e Temas Sociais – A Década das Conferências ”, p. 240/241, item n. 7.6, 2001, Fundação Alexandre de Gusmão, Brasília), expendeu considerações extremamente relevantes sobre o processo de afirmação, expansão e consolidação dos direitos da Mulher no século XX, analisando-os em função das diversas Conferências internacionais promovidas sob a égide da Organização das Nações Unidas:

            “Seja pelo desenvolvimento de sua situação em grande parte do mundo, seja nos documentos oriundos de cada uma das quatro grandes conferências da ONU a ela dedicadas nas três últimas décadas, o caminho percorrido pela mulher no século XX, mais do que um processo bem-sucedido de auto-ilustração no sentido kantiano – da qual a mulher efetivamente equiparada ao homem prescindiria e a mulher biológica per se não necessitaria -, evidencia uma capacidade de auto-afirmação, luta e conquista de posições inigualáveis na História. O fato é tão evidente que sua reiteração soa lugar-comum. Mais interessantes parecem os marcos conceituais de tal evolução.

            Na descrição de Miriam Abramovay, o desenvolvimento conceitual subjacente à práxis do feminismo passou, nas últimas duas décadas, dos enfoques reducionistas que encaravam a mulher como ente biológico, ao tratamento de sua situação como ser social, ‘ou seja, incorporou-se a perspectiva de gênero para compreender a posição da mulher na sociedade’. As conferências da ONU sobre a mulher, por sua vez, sempre tendo como subtítulo os termos ‘Igualdade, Desenvolvimento e Paz’, foram expandindo os campos prioritários de atuação. A partir dos subtemas do trabalho, da educação e da saúde, na Conferência do México, em 1975, passaram a incluir a violência, conflitos armados, ajustes econômicos, poder de decisão e direitos humanos em Nairóbi, em 1985, e, agora, abrangem os novos temas globais do meio ambiente e dos meios de comunicação, além da situação particular das meninas. As estratégias, que privilegiavam originalmente a integração da mulher no processo de desenvolvimento, em Nairóbi, já afirmavam que ‘o papel da mulher no processo de desenvolvimento tem relação com o desenvolvimento de toda a sociedade’. Faziam-no, porém, sem um exame mais detido das relações históricas assimétricas homem-mulher, que incorporam relações de poder.

            Em Beijing, as relações de gênero, com seu substrato de poder, passaram a constituir o cerne das preocupações e dos documentos adotados, tendo como asserção fundamental a reafirmação dos direitos da mulher como direitos humanos. E nestes se acham, hoje, naturalmente, incluídos seus direitos e necessidades específicos, particularmente os reprodutivos, os sexuais e os referentes à violência de que são vítimas, por indivíduos e sociedades, tradições, legislações e crenças.” (grifei)

            Essa função de tutela dos direitos da mulher, muitas vezes transgredidos por razões de inadmissível preconceito de gênero, é desempenhada, no contexto do sistema interamericano, pela Convenção Interamericana celebrada, em Belém do Pará (1996), com o objetivo de prevenir, punir e erradicar toda forma de desrespeito à Mulher, notadamente na hipótese de violência física, sexual e psicológica “ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa (…)” (Artigo 2, “B” – grifei).

            Veja-se, pois, considerados todos os aspectos que venho de ressaltar, que o processo de afirmação da condição feminina há de ter, no Direito, não um instrumento de opressão, mas uma fórmula de libertação destinada a banir, definitivamente, da práxis social, a deformante matriz ideológica que atribuía, à dominação patriarcal, um odioso estatuto de hegemonia capaz de condicionar comportamentos, de moldar pensamentos e de forjar uma visão de mundo absolutamente incompatível com os valores desta República, fundada em bases democráticas e cuja estrutura se acha modelada, dentre outros signos que a inspiram, pela igualdade de gênero e pela consagração dessa verdade evidente (a ser constantemente acentuada), expressão de um autêntico espírito iluminista, que repele a discriminação e que proclama que homens e mulheres, enquanto seres integrais e concretos, são pessoas igualmente dotadas de razão, de consciência e de dignidade.

            O Brasil, fiel aos compromissos assumidos na ordem internacional e reconhecendo que toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, de pressões, de opressão e de constrangimentos, tanto na esfera pública quanto no âmbito privado, veio a editar a Lei no 11.340/2006, a denominada “Lei Maria da Penha”, que criou mecanismos destinados a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

            Na realidade, a edição desse importante diploma legislativo deve ser compreendida no contexto da incisiva manifestação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que destacou, no exame concreto do crime cometido contra a Senhora Maria da Penha Maia Fernandes, que esse caso deveria ser analisado na perspectiva da discriminação de gênero por parte de órgãos do Estado brasileiro e em razão da impunidade dos agressores nessa área tão sensível quão delicada dos direitos básicos da pessoa humana.

Eis, no ponto, o pronunciamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos:

            “(…) essa violação segue um padrão discriminatório com respeito à tolerância da violência doméstica contra mulheres no Brasil por ineficácia da ação judicial. A Comissão recomenda ao Estado que proceda a uma investigação séria, imparcial e exaustiva , apta a determinar a responsabilidade penal do autor do delito de tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Fernandes e para determinar se há outros fatos ou ações de agentes estatais que tenham impedido o processamento rápido e efetivo do responsável; também recomenda a reparação efetiva e pronta da vítima e a adoção de medidas, no âmbito nacional, para eliminar essa tolerância do Estado ante a violência doméstica contra mulheres.”

            Daí a correta afirmação da douta Advocacia-Geral da União: “É de se ver, destarte, que a Lei Maria da Penha está em conformidade com a diretriz internacional adotada por diversos países, que inscreve a violência de gênero como violação dos direitos humanos, e dá cumprimento à determinação do órgão competente do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, ao qual o Brasil, por vontade livre e soberana, decidiu se submeter e cuja inobservância pode acarretar a responsabilidade internacional do Estado brasileiro.”

            Vale rememorar, no ponto, a observação feita por SILVIA PIMENTEL e FLÁVIA PIOVESAN (“Lei Maria da Penha: inconstitucional não é a lei, mas a ausência dela”, 2007) a propósito do que se vem de referir:

            “No campo jurídico, a Lei Maria da Penha vem a sanar a omissão inconstitucional do Estado Brasileiro, que afrontava a Convenção sobre Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres – a Convenção CEDAW da ONU, ratificada pelo Brasil em 1984 e sua Recomendação Geral 19, de 1992, que reconhecem a natureza particular da violência dirigida contra a mulher, porque é mulher ou porque a afeta desproporcionalmente. Esta omissão afrontava também a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – a ‘Convenção de Belém do Pará’ – ratificada pelo Brasil em 1995. Note-se que, diversamente de várias dezenas de países do mundo e de dezessete países da América Latina, o Brasil até 2006 não dispunha de legislação específica a respeito da violência contra a mulher. Até então aplicava-se a Lei 9099/95, que instituiu os Juizados Especiais Criminais (JECrim)  para tratar especificamente das infrações penais de menor potencial ofensivo e que, nos casos de violência contra a mulher, implicava naturalização deste padrão de violência, reforçando a hierarquia entre os gêneros e a subsequente vulnerabilidade feminina.

            Por força das referidas Convenções, o Brasil assumiu o dever de adotar leis e implementar políticas públicas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Neste mesmo sentido, o país recebeu recomendações específicas do Comitê CEDAW/ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos/OEA, que culminaram no advento da Lei 11.340, em 07 de agosto de 2006 – conquista histórica na afirmação dos direitos humanos das mulheres.” (grifei)

Entendo, por isso mesmo, Senhor Presidente, que o advento da Lei Maria da Penha significou uma expressiva tomada de posição por parte do Estado brasileiro, fortemente estimulado, no plano ético, jurídico e social, pelo valor primordial que se forjou no espírito e na consciência de todos em torno do princípio básico que proclama a essencial igualdade entre os gêneros, numa evidente e necessária reação do ordenamento positivo nacional contra situações concretas de opressão, de degradação, de discriminação e de exclusão que têm provocado, historicamente, a injusta marginalização da mulher.

            A Lei Maria da Penha, que “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, longe de transgredir a Constituição da República, qualifica-se, segundo entendo, como legítimo instrumento de efetivação e de realização concretizadora dos grandes princípios nela consagrados, em especial a determinação do que se contêm no art. 226, § 8o, de nossa Lei Fundamental, cujo texto impõe, ao Estado, o dever de coibir a violência no âmbito das relações familiares.

            Esta decisão representa marco importante na concretização de um dos tópicos mais relevantes e sensíveis da agenda dos Direitos Humanos em nosso País, pois se revestem de imenso significado as consequências  positivas que resultarão deste julgamento, fortalecendo e conferindo maior eficácia aos direitos básicos da mulher, em especial da mulher vítima de violência, e tornando efetiva a reação do Estado na prevenção e repressão aos atos criminosos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

            Por tais razões, acompanho, integralmente, o douto voto proferido pelo eminente Relator. É o meu voto.” (CELSO DE MELLO).

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