INADMISSIBILIDADE DE ABORDAGEM POLICIAL SEM FUNDADA SUSPEITA, AGRAVADA PELO EMPREGO DE VIOLÊNCIA: CONSEQUÊNCIAS DAÍ RESULTANTES

EDIÇÃO 2310 – 4-1-2025

         O Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o pedido de “habeas corpus” n. 933.395/SP, Relator Ministro Ribeiro Dantas, absolveu um réu que havia confessado a prática de um crime após ser torturado (e chicoteado) por (maus) policiais militares do Estado de São Paulo ! 

         Nesse relevante julgamento, revestido de significativa importância para a proteção dos direitos, garantias e liberdades fundamentais do cidadão – que sempre se presume inocente contra qualquer acusação, até que sobrevenha, contra ele, como prevê a própria Constituição Federal (artigo 5º, inciso LVII), condenação criminal transitada em julgado (irrecorrível, portanto) – , o STJ , após reconhecer que os policiais militares estão subordinados, ética e juridicamente, à autoridade da Constituição e das leis da República, proclamou, com plena e absoluta correção, que são nulas e devem ser excluídas dos autos do processo penal as provas, quaisquer provas, obtidas, ilicitamente, durante abordagem policial conduzida com violência, tortura, arbitrariedade e sem fundada suspeita. 

         Com essa acertadíssima orientação, o STJ, em face do caráter vergonhosamente ilícito (e totalmente imprestável) da prova coligida contra o acusado, veio a absolvê-lo, por unanimidade, reformando o acórdão do Tribunal de Justiça paulista que o havia injustamente condenado à prisão, não obstante houvesse o réu confessado a prática de um crime sob tortura, cometida, em 2023, por policiais militares de São Paulo.

         Essa decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça tem alto valor pedagógico, pois transmite aos agentes policiais do Estado de São Paulo (e do Brasil, também) grave e severa advertência, no sentido de que comportamentos abusivos e truculentos, além de implicarem responsabilização criminal e administrativo-disciplinar dos agentes estatais, constituem fatores (a) de nulidade processual, (b) de imprestabilidade dos elementos de prova ilicitamente coligidos e (c) de invalidação da própria sentença condenatória ! 

         O fato irrecusável é um só: abordagem policial realizada sem fundada suspeita e agravada, ainda, pelo emprego de violência (como a tortura), com o objetivo de obter prova contra alguém, constitui inaceitável violação aos direitos e liberdades fundamentais da pessoa humana e traduz fator de invalidação, por ilicitude, das provas coligidas por esse meio hediondo. 

         O julgamento unânime em questão, recentemente proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo a invalidade total e absoluta de confissão e de prova obtidas mediante coerção física e agressões corporais perpetradas por agentes policiais, estimula reflexões em torno do nefando crime de tortura, tal como vem ele tipificado (definido) pela Lei n. 9.455, de 07 de abril de 1997.  

         Tenho por fundamental insistir, bem por isso, na afirmação de que a tortura, além de expor-se a um juízo de profunda reprovabilidade ético-social, revela, no gesto primário e irracional de quem a pratica, uma intolerável afronta aos direitos básicos da pessoa humana e um acintoso desprezo pela ordem jurídica estabelecida.

         Trata-se de conduta cuja gravidade objetiva torna-se ainda mais intensa, na medida em que a transgressão criminosa do ordenamento positivo decorre de abusivo exercício de função estatal.

         O Brasil, consciente da necessidade de prevenir e de reprimir os atos caracterizadores da tortura, subscreveu, no plano externo, importantes documentos internacionais, de que destaco, por sua inquestionável importância, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1984; a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, concluída em Cartagena em 1985, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), adotada no âmbito da OEA em 1969, atos internacionais estes que já se acham incorporados ao plano do direito positivo interno de nosso País (Decreto nº 40/91, Decreto nº 98.386/89 e Decreto nº 678/92).

         Cabe sempre enfatizar que a tortura exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, as múltiplas formas de execução desse gesto caracterizador de profunda insensibilidade moral daquele que se presta, com ele, a ofender a dignidade da pessoa humana.

         O respeito e a observância das liberdades públicas impõem-se ao Estado como obrigação indeclinável, que se justifica pela necessária submissão do Poder Público aos direitos fundamentais do ser humano.

         O conteúdo dessas liberdades (“ex parte subjecti”) – verdadeiras prerrogativas do indivíduo em face da comunidade estatal – acentua-se pelo caráter ético-jurídico que essas franquias individuais assumem e pelo valor social que ostentam, na proporção exata em que elas criam, em torno da pessoa, uma área indevassável e inteiramente oponível à ação do Estado.

         Quando se fala em tortura, a problematização da liberdade individual na sociedade contemporânea não pode prescindir de um dado axiológico essencial: o do valor ético e fundamental da pessoa humana.

         Daí a advertência de CELSO LAFER (1941), em sua preciosa obra “A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt”, p. 118, 1988, Companhia das Letras, S. Paulo:

         “(…) o valor da pessoa humana, enquanto conquista histórico-axiológica, encontra a sua expressão jurídica nos direitos fundamentais do homem. É por essa razão que a análise da ruptura – o hiato entre o passado e o futuro, produzido pelo esfacelamento dos padrões da tradição ocidental – passa por uma análise da crise dos direitos humanos, que permitiu o estado totalitário de natureza.” 

         Importante rememorar, neste ponto, a lúcida abordagem de HÉLIO PELLEGRINO (1924-1988), psicanalista, autor do ensaio “A dialética da tortura: Direito versus direita”, sobre a utilização da tortura como instrumento de repressão política (“A Tortura Política”, “in” “Jornal do Brasil”, Caderno B, de 18/04/85):

         “O projeto da tortura implica uma negação total – e totalitária – da pessoa enquanto ser encarnado. O centro da pessoa humana é a liberdade. Esta, por sua vez, é a invenção que o sujeito faz de si mesmo, através da palavra que o exprime. Na tortura, o discurso que o torturador busca extrair do torturado é a negação absoluta de sua condição de sujeito livre. A tortura visa ao acesso da liberdade. A confissão que ela busca, através da intimidação e da violência, é a palavra aviltada de um sujeito que, nas mãos do torturador, se transforma em objeto. Ao quebrar-se frente à tortura, o torturado consuma – e assume – uma cisão que lhe rouba o uso e o gozo pacífico do seu corpo. A ausência de sofrimento corporal, ao preço da confissão que lhe foi extorquida, lhe custa a amargura de sentir-se traidor, traído pelo próprio corpo. Sua carne apaziguada testemunha e denuncia a negação de si mesmo enquanto pessoa. A tortura, quando vitoriosa, opera no sentido de transformar sua vítima numa degradada espectadora de sua própria ruína.” 

         Esta é uma verdade que não se pode desconhecer: a emergência das sociedades autocráticas está causalmente vinculada, de modo rígido e inseparável, à desconsideração da pessoa humana, enquanto valor fundante da própria ordem político-jurídica do Estado.

         A tortura, nesse contexto, constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete – enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva – um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir, criminosamente, a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo.

         Atenta a esse fenômeno, a Assembleia Nacional Constituinte, ao promulgar a vigente Constituição do Brasil, nela fez inscrever, como princípios fundamentais da nova ordem jurídica, os seguintes valores essenciais:

(a) a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, n. III);

(b) a prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, n. II);

(c) o repúdio à tortura ou a qualquer outro tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, n. III);

(d) a punibilidade de qualquer comportamento atentatório aos direitos e liberdades fundamentais (artigo 5º, n. XLI);

(e) a inafiançabilidade e a impossibilidade de concessão de graça ou anistia ao crime de tortura (artigo 5º, n. XLIII);

(f) a proscrição de penas cruéis (artigo 5º, n. XLVII, ‘e’);

(g) a intangibilidade física e a incolumidade moral de pessoas sujeitas à custódia do Estado (artigo 5º, n. XLIX);

(h) a decretabilidade de intervenção federal, por desrespeito aos direitos da pessoa humana, nos Estados-membros e no Distrito Federal (art. 34, n. VII, ‘b’);

(i) a impossibilidade de revisão constitucional que objetive a supressão do regime formal e material das liberdades públicas (artigo 60, § 4º, n. IV); 

(j) a inadmissibilidade processual de provas contaminadas pelo vício da ilicitude (artigo 5º., n. LVI).

         Impende destacar, de outro lado, que a condenação penal imposta ao torturador, seja este agente público civil ou militar, implicará “a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada” (Lei nº 9.455/97, art. 1º, § 5º).

         Essa, também, é a compreensão manifestada por ALBERTO SILVA FRANCO, RAFAEL LIRA e YURI FELIX (“Crimes Hediondos”, p. 212, item n. 2, “k”, 7ª ed., 2011, RT), cuja lição sobre o tema vale reproduzir:

         “O § 5º do art. 1º da Lei 9.455/97 estatui que a sentença condenatória, por tortura, desde que transitada em julgado, acarretará a perda do cargo, função ou emprego público do agente público. Cuida-se, no caso, de efeito automático da condenação, não dependente de motivação, ou do tempo de duração da condenação. Além disso, o legislador penal, em discrepância com o que foi estabelecido na Reforma Penal de 1984, ressuscitou a pena acessória de interdição para o exercício de cargo, função ou emprego público. Tal interdição deverá ter a duração do dobro do prazo da pena aplicada.” 

         Igual orientação, por sua vez, é adotada por outros eminentes autores que sustentam ser automática a perda do cargo como efeito necessário resultante da condenação penal imposta ao agente público pela prática do crime de tortura (FLÁVIO MARTINS ALVES NUNES JÚNIOR, “Leis Penais Especiais”, p. 288, item n. 7.12, 2013, RT; RICARDO ANTONIO ANDREUCCI, “Legislação Penal Especial”, p. 661, item n. 7, 8ª ed., 2011, Saraiva; JULIO FABBRINI MIRABETE, “Tortura: Notas sobre a Lei 9.455/97”, “in” RT, vol. 746/476 e ss., item n. 8; FLÁVIA CAMELLO TEIXEIRA, “Da Tortura”, p. 147/148, item n. 2.7, 2004, Del Rey, v.g.). 

         Em conclusão: “1. Provas obtidas mediante violência física, tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante são nulas e devem ser desentranhadas do processo. 2. A abordagem policial sem fundada suspeita e com emprego de violência configura violação aos direitos humanos e invalida as provas obtidas.” (Tese firmada no julgamento unânime, acima referido, do STJ).   

(CELSO DE MELLO, Ministro aposentado e ex-Presidente
do Supremo Tribunal Federal, biênio 1997-1999)

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