STF E GOLPE DE ESTADO: ESCLARECENDO DÚVIDAS PROCESSUAIS

EDIÇÃO 2307 – 7-12-2024

(CELSO DE MELLO, Ministro aposentado e ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, biênio 1997-1999)

         1. “O Plenário do STF dispõe de competência penal originária somente para processar e julgar, nos crimes comuns, o presidente e o vice-presidente da República, os presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, os ministros do STF e o procurador-geral da República. 

         Nas demais hipóteses de crimes comuns, previstas no artigo 102, inciso I, da Constituição Federal (excluídos, portanto, aqueles casos que remanescem na esfera do Pleno), a competência penal originária foi recentemente devolvida às Turmas do ST, o que representou, sem dúvida alguma, por razões de celeridade e de funcionalidade, medida adequada e racional. 

         As modificações introduzidas no Regimento Interno do STF, ocorridas em dezembro de 2023, resultaram de deliberação administrativa do Plenário da Suprema Corte (PADM 2), que invocou, para tanto, a necessidade de racionalizar a distribuição dos processos criminais e de reduzir a sobrecarga do Plenário. No âmbito de tais modificações, suprimiu-se, também, a figura do revisor nas ações penais originárias (v. Emenda Regimental n. 59, de 18/12/2023).

         Cabe assinalar que essas alterações regimentais, como a que deslocou, em algumas hipóteses, a competência penal originária do Pleno para as Turmas do STF, somente se aplicarão aos processos penais instaurados após a publicação, em 08 de janeiro de 2024 (DJe/STF), da mencionada Emenda Regimental n. 59, de 18/12/2023.  

         No caso da criminosa tentativa de golpe de Estado em questão, é a Primeira Turma do STF o juízo natural da causa, em face do que prescreve o próprio Regimento Interno do STF ! 

         As Turmas, como a Primeira Turma, constituem a “longa manus” do próprio Supremo Tribunal Federal ! Na realidade, qualquer das Turmas, no âmbito de suas atribuiçōes jurisdicionais, traduz legítima expressão da própria Corte Suprema ! 

         A Turma, em uma palavra, na esfera de sua competência (seja esta originária ou recursal, civil ou penal), é o próprio Supremo Tribunal Federal em atuação ! 

         2. O Regimento Interno do STF, em seu artigo 21, § 3º., confere ao Relator o poder de indicar se o processo que vai julgar deve ser, ou não, incluído na pauta do Pleno ou da Turma a que pertence: “Ao pedir dia para o julgamento ou apresentar o feito em mesa, indicará o Relator, nos autos, se o submete ao Plenário ou à Turma, salvo se pela simples designação da classe estiver fixado o órgão competente.” 

         No caso em tela, como acima se viu, o próprio Regimento Interno do STF atribui à Turma competência penal originária para processar e julgar a ação penal contra os indiciados (RISTF, artigo 9º., I, alíneas “l” e “m”), pelo fato de estes não disporem, presentemente, de qualificação funcional que legitime sua submissão ao Plenário da Corte, cujas atribuições em matéria criminal apenas abrangem determinadas autoridades ainda no exercício de seus cargos (RISTF, artigo 5º., inciso I, na redação dada pela Emenda Regimental n. 59, de 18/12/2023).

         3. Finalmente, cumpre relembrar que o Plenário do STF, no julgamento do HC 232.627-DF, Relator o Min. Gilmar Mendes, formou expressiva maioria no sentido de preservar sua competência penal originária (“perpetuatio jurisdictionis”) em casos nos quais o fato delituoso, como o “golpe de Estado” em questão, tenha sido cometido durante o exercício funcional, muito embora o respectivo agente não mais o titularize.   

         Eis a tese que, proposta pelo Ministro Relator, já obteve o apoio da maioria absoluta do STF: 

         “A prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício.”

         A competência penal originária do STF, portanto, encontra suporte legitimador na orientação que se vem de referir, sendo irrelevante que muitos dos indiciados já não mais ostentem a condição funcional que lhes assegurava, até então, prerrogativa de foro perante o STF ! 

         De qualquer maneira, e mesmo que assim não fosse, cabe reconhecer que há um indiciado, Ramagem, que, por ser Deputado Federal, tem no STF o seu juiz natural, sendo certo, ainda, que, por haver relação de conexidade entre a conduta a ele atribuída e o comportamento alegadamente criminoso imputado aos outros indiciados (vínculo de conexão probatória), impor-se-á o “simultaneus processus”, a significar a necessidade de unidade de processo e julgamento (CPP, artigo 79, “caput”) perante o STF, em face da “vis attractiva” exercida pela presença do Deputado Federal Ramagem ! 

         É pelas razões acima referidas que o crime de “golpe de Estado” (que se identifica como “delito de atentado” ou “crime de empreendimento”, segundo o tipo penal de insurreição previsto no Código Penal), deve ser originariamente julgado pelo Supremo Tribunal Federal.” 

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